terça-feira, 2 de agosto de 2011

Nada de cane, étimo italiano cão, e nada do desprezível aglia. Nenhum cão branco, preto, marrom, creme, amarelo, cinza. Nada de canino canalha. Canalha é negócio dos homens. Fora o homem, nenhum animal se escolheu canalha. Canalha é produto próprio da parte desprezível da cultura humana. Ser canalha, se tomar canalha, se preservar canalha, se atender canalha. Atitude do homem desprezível.

O filósofo Nietzsche diria que o canalha é uma degeneração do instinto humano. Uma aberração. Marx diria que o canalha é um corpo patológico do capitalismo que corrói o organismo social produtivo não-alienado. Em qualquer percepção e concepção, o canalha é nocivo à vida democrática. Mas eis a ironia: é exatamente na vida democrática que ele quer prosperar. Ele não existe se não for corroendo os princípios éticos constitutivos da produção democrática. Parece paradoxal, mas não é. Por ser uma mórbida manifestação social, o canalha, em sua pulsão patológica, só vê campo para agir onde a liberdade constitutiva se expressa, como ocorre na democracia. Porque ele é uma impotência ontológica. Ele, como uma degeneração, não tem potência ontológica capaz de o colocar em entrelaçamento constitutivo com as comunalidades para produzir o Bem-Comum. Pelo contrário, ele age para se apossar do Bem-Comum, já que, impotente, seu entendimento de potência ocorre no ato em que ele se apossa do que lhe é alheio, visto não produzir em si corpos morais. Daí ser um corpo pustulento, viscoso, aversivo, asqueroso, vil, bilioso, arrogante, prepotente, habilidoso, libidinoso. Só não é hipócrita. O hipócrita é aquele que representa um personagem para conseguir o que almeja por mais ignóbil que seja. O canalha não representa, ele é o que é. Ele não tem duplo.

O filósofo Sartre o chama de uma consciência malograda. Um modelo burguês. Uma existência que se mostra sempre em Má-Fé, em subterfúgio, atalhos, fugas. Porque ele se escolheu um covarde, um cabotino. Sua grande estratégia é tramar, trapacear, calcular, usurpar. Tudo impulsionado pelo medo da liberdade ontológica e da responsabilidade histórica que todos homens engajados devem propugnar.

PORQUE OS CANALHAS NÃO ENVELHECEM

Se tivéssemos que situar a origem do canalha em um complexo genético social-patológico, diríamos que ele é um resistente vírus histórico com grande força deletéria aos anti-corpos da democracia. E uma grande força de propagação virulenta. Foi por isso que o douto autor da frase “Os canalhas também envelhecem” construiu uma enunciação ilógica. Ele não o colocou no contexto genético social-patológico-histórico-familial. O canalha não envelhece, porque ele é um vírus com grande força de propagação ao ponto de produzir uma pandemia histórica, já que é uma manifestação teratológica.

Embora o filósofo Baudrillard, em seus estudos dos clones sociais não o tenha inserido, o canalha é um caso de replicância vil da humanidade. O primeiro serial-clone. Ele sempre esteve em toda as sociedades. Em todas as classes da sociedade – profissional, artística, religiosa, esportiva, econômica, legislativa, judiciária, executiva. Assim como um telespectador acéfalo, como o do BBB, ele facilmente se multiplica, visto que há sempre, na cultura voraz da canalhice, um terreno fértil para sua replicância. E, nessa condição de clonagênese, ele não pode nunca envelhecer.

Digamos que uma família de canalhas vai matricular seu filho em uma escola. Que escola ela escolhe? Aquela que segregar melhor canalhice. Digamos que o pai seja um canalha bem estabelecido, é claro que ele vai estimular o filho para que o filho seja um bem estabelecido canalha como ele, porque a lógica do canalha é se dar bem de qualquer jeito. Na realização do casamento, canalha casa com canalha. Por isso, vemos canalhas saltitando em todos os territórios sociais. Pais canalhas tendem sempre conduzir seu filhos para o território da canalhice. Quando um pai canalha vê um político canalha eleito, ele vibra de contentamento, imaginando a proximidade de seu filho com o canalha demagogo.

Das muitas qualidades nocivas de um canalha, uma que solta aos sentidos e à razão é que ele não tem amigo. Ele tem cúmplices. Digamos que ele esteja comemorando suas bodas de prata – pode ser de ouro, de diamante, até de petróleo – e sua casa se encontre cheia: juízes, desembargadores, empresários, gatinhas, gatinhos, políticos, religiosos, artistas. Só “amigos”? Não, só cúmplices. O amigo conduz o amor e a confiança, o canalha é um compulsivo desconfiado, e um triste mal-amado. Não confia em ninguém, e não ama ninguém. Só “confia” e “ama” o produto de sua degeneração.

Em todas suas relações – diante de Deus, na igreja, no tribunal, no aniversário de um ente familiar, em um velório -, quem primeiro dá as caras é sua canalhice. Se em uma dessas convenções ele chora, é somente uma reação fisiológica, as lágrimas não expressão um entrelaçamento afetivo com o sujeito ao qual ele se dirige. Como não compõe comunalidade, o outro é uma abstração. Nisso, a solidariedade surge como um vazio significante sem sentido social e humano. Por isso, como diz o teatrólogo alemão Brecht, para ele “a humanidade é uma exceção”. Quando acontece uma catástrofe e ele for um canalha público, sua manifestação é meramente material, e muito bem propagada para ele ser tomado como um bom cristão. Como estão “solidários” muitos no Haiti! A canalha da política internacional.

A existência real e a fictícia está repleta de ilustres canalhas. Historicamente, Herodes, Stalin, Hitler e muitos tantos. Na ficção, um só basta. Iago, personagem da peça Othelo, de Shakespeare. Porque a canalhice é uma subjetividade da dor – alguns chamam ideologia -, ela arrola todos que carregam os mesmos signos do ódio contra a Vida. É por isso que o canalha é medroso, e é por isso que em seus atos de se apossar do dinheiro público (erradamente chamado de corrupto, já que o canalha é o vírus mater: não haveria corrupto sem o canalha), ele faz tudo para se mostrar um cidadão acima de qualquer suspeita. Ele tem pavor da Justiça da mesma forma que tem pavor de adoecer. Ele se mostra prepotente, arrogante, seguro, mas quando desconfia que está doente cai de quatro no fundo do desespero com medo de morrer. Mas é compreensível porque ele tem medo de morrer. Ele tem medo da vida. O que sustenta toda sua canalhice é esse medo de existir.

Mas o canalha é um estúpido pervertido. Ele não entende que sua canalhice revigora sempre sua atitude torpe, sua força mantenedora. Se, como diz o poeta, a velhice é um flerte com a morte, ele nunca irá flertar com a doce e querida dama. Visto que sua lógica canalha, traçada nos sucedâneos da infância, adolescência, juventude e existência adulta canalha, impede que envelheça. O que lhe faz, em uma sociedade antidemocrática, ser imortal.

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